Continuo a explorar as dicas que os generosos leitores do Ouve-se me deram num post em que me queixei da qualidade da música em 2009. Uma das dicas do Miguel Caetano foi Dark Night Of The Soul, um projecto de Danger Mouse (Gnarls Barkley, Gorillaz), Sparklehorse (a banda que é quase um alter-ego de Mark Linkous) e o cineasta David Lynch.
Este projecto tem particularidades muito interessantes. A primeira delas é uma disputa legal entre Danger Mouse e a EMI que fez com que o lançamento do álbum fosse feito com um CD-R em branco (sim, a música que constitui o álbum não foi oficialmente lançada). A segunda é o facto de ter tido uma edição limitada (tanto quanto vejo, os preços a modos que dispararam no mercado da segunda mão) a 5000 mil cópias com um livro com mais de 100 páginas de fotografias de David Lynch. A terceira (e última neste pequeno preâmbulo) é o leque de vocalistas convidados. Wayne Coyne (The Flaming Lips), Iggy Pop, Black Francis (The Pixies), James Mercer (The Shins), Julian Casablancas (The Strokes), Jason Lytle (Grandaddy) e Nina Persson (The Cardigans), entre outros, emprestam as vozes a diferentes temas.
O resultado é simplesmente brilhante. Não conhecendo especialmente bem o trabalho dos Sparklehorse (o que terá, naturalmente, de ser corrigido em breve) e não sendo um fã incondicional de Danger Mouse (apesar de achar piada a alguns dos seus projectos, claro está), este Dark Night Of The Soul aproveita a minha ignorância para me arrasar. No mínimo, é de um bom gosto inatacável. No máximo, é o álbum do ano (mas vá, ainda faltam quase quatro meses).
O que fez com que Dark Night Of The Soul me conquistasse? A resposta curta é: a primeira música. O disco abre com “Revenge”, uma música de melodia doce e letra amarga e resignada em que um Wayne Coyne de voz perturbada por máquinas e efeitos faz aquilo que consigo apenas descrever como uma espécie de home run musical capaz de deixar qualquer um preso a uma cadeira. Sim, é uma das melhores.
Fica claro logo desde início que Dark Night Of The Soul tem um espírito, um tom. Isso percebe-se em quase todas as músicas, mesmo na quase-elegante “Just War” (com voz de Gruff Rhys, dos Super Furry Animals), que parece banda sonora de qualquer coisa boa e antiga. Ou em “Little Girl”, em que Julian Casablancas quase parece cantar uma música dos Strokes.
Mas antes disso ainda passa a fantástica “Jaykub”, em que o jogo entre a melodia simpática, a letra cínica, condescendente e maldosa, a voz cuidadosa de Jason Lytle e o sintetizador constante servem simplesmente para duas coisas: gozar com a cara do pobre Jaykub e fazer-nos felizes. Desde a forma como Lytle chama Jaykub (como se o quisesse acordar gentilmente de um sono profundo) até ao ridículo pódio… Ouçam e vão perceber.
Depois entra a secção pesada do álbum. “Angel’s Harp” (com Black Francis) faz lembrar as músicas barulhentas dos Dinosaur Jr., mais do que o trabalho dos Pixies; “Pain” faz de Iggy Pop um anjo da dor eterna ou algo do género, sempre a uma velocidade motoqueira.
“Star Eyes (I Can Catch It)”, de David Lynch, é esquisita. Alguém esperava outra coisa? A voz de James Mercer aparece torta e volta a aparecer, desta vez mais direita, em “Insane Lullaby”. A seguir – e já na fase final do álbum -, ouve-se a voz de Mark Linkous e de Nina Persson em “Daddy’s Gone”. Ela já tinha colaborado num álbum de Sparklehorse em 2001 e aqui percebe-se facilmente porquê: o dueto resulta muito, muito bem.
Nina Persson é, de resto, uma das estrelas deste Dark Night Of The Soul. Logo a seguir, dá a sua frágil voz à gigante “The Man Who Played God” e a coisa resulta tão bem que dá vontade de a ouvir e ouvir vezes sem conta. Se quiserem saber, é capaz de ser, juntamente com “Jaykub” e “Revenge”, uma das minhas favoritas.
A partir daqui, saímos definitivamente das vozes cândidas e das melodias fáceis e agradáveis. Vic Chesnutt canta as duas últimas e posso dizer-vos que é coisa para meter respeito. A melodia é sensivelmente a mesma em ambas as músicas. Na primeira, Chesnutt tem voz de homem; na segunda (mais uma de David Lynch), tem voz de robot. É um final fiel ao ambiente negro do álbum.
Falei pouco deles porque se escondem atrás de vozes fantásticas. Danger Mouse e Sparklehorse têm aqui um álbum de que se podem orgulhar seriamente. Um projecto que reúne esta gente toda podia certamente dar para o torto ou tornar-se numa espécie de peça avant-garde de valor duvidoso. Mas não aconteceu. O space-indie-alt-rock dos Sparklehorse está cá todo; a sensibilidade e bom-senso (ah ah) de Danger Mouse também. Gosto, já agora, de pensar que David Lynch foi, mais do que uma clara inspiração, um actor preponderante nesta obra. A escuridão e a esquisitice são dele por direito próprio.
Enfim, Dark Night Of The Soul é um forte candidato a álbum do ano.