Dos sussurros folk iniciais à grandiosidade pop dos últimos anos.
O primeiro contacto de muito boa gente com a música de Iron & Wine aconteceu por volta de 2004. A culpa foi sobretudo de Garden State, o filme realizado e protagonizado por Zach Braff sobre um jovem adulto que volta à cidade-natal para o funeral da mãe e conhece uma rapariga (do género que passaria a ser descrito como “Manic Pixie Dream Girl”) representada por Natalie Portman. Mais especificamente, a culpa é da banda sonora do filme, que se tornou numa espécie de manual de introdução à música indie, com nomes como The Shins, Frou Frou ou os clássicos Nick Drake e Simon & Garfunkel no alinhamento. E, claro está, Iron & Wine.
A música não era sequer original. Era “Such Great Heights”, dos The Postal Service, reinterpretada. Mas essa reinterpretação chegou e sobrou para que as pessoas fossem à procura do resto.
É óbvio que este reconhecimento não surgiu do nada. Houve, aliás, outro filme a incluir Iron & Wine na sua banda sonora no mesmo ano: In Good Company (com Dennis Quaid, Topher Grace e Scarlett Johansson) fechava com a nostálgica “The Trapeze Swinger”. E em 2004 já Our Endless Numbered Days, o segundo álbum, andava por aí à espera de ser ouvido.
Mas recuemos.
Tudo começou no ano 2000. Sam Beam, o homem por trás da barba por trás de Iron & Wine, cresceu virado para a música e a pintura no estado norte-americano da Carolina do Sul. E o Sul, aqui, ajuda a perceber porque lhe está entranhada no sangue aquela folk isolada e soalheira.
Estudou belas artes, fotografia e cinematografia… mas acabou por começar a gravar música em casa. Baixinho, para não incomodar a mulher e a filha (a primeira de cinco filhas, diga-se).
Várias dessas cruas gravações acabaram por chegar a Jonathan Poneman, um dos donos da Sub Pop, através de amigos em comum. Algumas delas viriam a transformar-se, em 2002, no primeiro álbum de Iron & Wine: The Creek Drank The Cradle.
Basta um minuto de “Lion’s Mane”, a primeira música do álbum, para percebermos o quão bom aquilo é. Somos atacados por um bucolismo que nos deixa imediatamente a respirar melhor e ao mesmo tempo de coração apertado, como se nos sentíssemos melancólicos sobre algo que nunca vivemos.
As imagens vívidas que Sam Beam nos transmite através da folk lo-fi de The Creek Drank The Cradle têm em mim efeito semelhante às pormenorizadas descrições de Philip Roth em Pastoral Americana. Transportam-me inteiro para lá (e por lá fico mais um bocado depois de acabar).
Canções como a já referida “Lion’s Mane”, “Faded From The Winter” e “Upward Over The Mountain” são a introdução perfeita à música de Iron & Wine. Mas estão, felizmente, longe de ser o ponto alto.
Depois de lançar um EP em 2003 composto por temas gravados em casa na mesma altura dos que acabaram em The Creek Drank The Cradle, Sam Beam deu o pulo em 2004. Um pulo em forma de álbum chamado Our Endless Numbered Days. Com um álbum destes na rua, a espécie de fama repentina provocada por “Such Great Heights” surgia na altura perfeita.
As gravações caseiras deram lugar ao profissionalismo de um estúdio de gravação e a mais instrumentos. Os doces sussurros de Sam Beam e o ambiente confortável e seguro que a música de Iron & Wine criava, esses, continuavam lá. Pareciam, de resto, ter vindo para ficar.
Se já se ouve algo muito maior em canções como “On Your Wings” e “Cinder And Smoke”, também é certo que a simplicidade e uma certa modéstia instrumental dão a Our Endless Numbered Days os melhores argumentos para nos convencer de vez. “Naked As We Came” e “Sunset Soon Forgotten” são duas das melhores músicas da carreira de Iron & Wine mas estão longe de ser os únicos focos de interesse num álbum quase perfeito. “Love And Some Verses”, “Each Coming Night”, “Fever Dream”, “Sodom, Georgia” e “Passing Afternoon” chegam e sobram para tornar Our Endless Numbered Days um álbum para quem quer saber a que soa o Sul dos Estados Unidos.
Sam Beam estava lançado. Woman King, editado em 2005, veio reforçar essa ideia. O EP é verdadeiramente fantástico – diverso e complexo como os álbuns que acabaram por aparecer depois.
No entanto, não posso deixar de culpar a maravilhosa “Jezebel”, à qual tenho de regressar de tempos a tempos para repor os meus níveis de Iron & Wine. É o arquétipo de canção de Sam Beam a vários níveis: primeiro, pela conjunção dedilhado-sussurro típica dos primeiros anos; depois, pela subversão do tema religioso, através de Jezebel, a personagem bíblica que dá nome à canção mas cuja história surge contada de forma muito diferente; por fim, os apontamentos com piano, banjo e aquele belíssimo cravo que acompanha a música do início ao fim.
Ainda em 2005, há outro momento marcante para o destaque que Iron & Wine mereceu por essa altura e desde então: o mini-álbum editado em conjunto com os Calexico, os mestres esquisitos da americana, aquele género musical difícil de descrever (folk/country/rock?) e muito chato de introduzir numa frase em Português.
E In The Reins é tão, mas tão bom. Desde “He Lays In The Reins” (que conta com a colaboração do veterano mexicano Salvador Durán) até à tristíssima “Dead Man’s Will”, cuja brilhante letra me persegue de tempos a tempos.
A beleza da música de Iron & Wine está, pode dizer-se, nas vívidas imagens que pinta e numa certa simplicidade de meios que parece estar muito longe de esgotar-se. Mas apesar de os princípios se manterem os mesmos praticamente do início, a forma como se manifestam na música de Sam Beam tem mudado com o passar dos anos. The Shepherd’s Dog, ouso argumentar, é o álbum que marca a escolha do caminho.
Editado em 2007, foi o primeiro disco a contribuir verdadeiramente para afastar a ideia de que Iron & Wine era exclusivamente um projeto de homem, barba e guitarra. Mantém-se o quotidiano do campo e um piscar de olho à religião mas The Shepherd’s Dog dá-nos menos doces e mais ossos duros de roer. “Pagan Angel And A Borrowed Car”, “Wolves (Song Of The Shepherd’s Dog)” e a gigante “Flightless Bird, American Mouth” dão mais que conta do recado e marcam o novo formato de banda completa de Iron & Wine.
A compilação de lados B e raridades Around The Well, de 2009, teve a dupla função, portanto, de pôr num só disco canções como “Such Great Heights”, “Waitin’ For A Superman” (uma versão do clássico dos The Flaming Lips) e “The Trapeze Swinger” e, ao mesmo tempo, de servir como despedida daqueles Iron & Wine.
Se foi com The Shepherd’s Dog que Sam Beam saiu verdadeiramente do quarto, pode dizer-se que, em 2011, a fórmula foi aperfeiçoada com o gigante Kiss Each Other Clean. Marcadamente pop e mais próximo de uns My Morning Jacket do que de Nick Drake, este é o álbum da emancipação. Com camadas e camadas de voz, sopros e eletricidade sobre melodias típicas do universo folk e blues, Kiss Each Other Clean mostra-nos uns Iron & Wine maiores e prontos para encher um palco de uma ponta à outra. “Walking Far From Home”, “Tree By The River”, “Half Moon”, “Rabbit Will Run” e a épica “Your Fake Name Is Good Enough For Me” merecem destaque mas o álbum é daqueles que se ouvem de uma ponta à outra e a seguir, quando lá voltamos, encontramos sempre algo mais com que podemos entreter-nos. E ainda por cima há uma sessão ao vivo no programa Morning Becomes Eclectic da rádio californiana KCRW e esta 4AD Session da altura para podermos ouvir versões alternativas.
Sam Beam é um artista em mutação constante. As mudanças parecem ter vindo a tornar-se menos drásticas com o tempo mas estão lá para quem quiser ver. Ghost On Ghost, editado em 2013, deixa perceber isso e muito mais. Depois dos sussurros, depois de se tornar homem-banda, Sam Beam quer continuar a apalpar terreno. É por isso que ouvimos, por um lado, maior experimentação e, por outro, uma aproximação a uma soul pop clássica em Ghost On Ghost.
É necessário, porém, referir que este é o primeiro álbum de Iron & Wine que me deixou a olhar para trás. É que, apesar da destreza técnica e das melodias interessantes, há algo de menos profundo em Ghost On Ghost. “Caught In The Briars” promete mais um álbum gigante mas a coisa cedo se transforma em ensaio-afunilado-até-ser-álbum e eu perco o interesse. Continua a haver boas malhas mas não é a mesma coisa quando precisamos de escavar para as encontrar.
Archives Series Volume No. 1 e Sing Into My Mouth, editados já este ano, chegam mesmo a tempo de mitigar o efeito de Ghost On Ghost. O primeiro é uma compilação de raridades e lados B ao estilo de Around The Well, a lembrar a troika homem-barba-guitarra dos primeiros tempos. O segundo é um álbum de covers criado a meias com Ben Bridwell, vocalista dos Band Of Horses. Nenhum dos discos é essencial nas vossas vidas mas se sentem uma certa nostalgia relativamente à nostalgia que populava os primeiros álbuns de Iron & Wine, têm aqui com que se entreter. Não vai chegar para vos encher as medidas, fiquem avisados, mas sempre é alguma coisa.
Iron & Wine é uma mistura de memórias, bagagem e perguntas por responder. De espírito resignado e com palavras que carregam muitas vezes uma dor esbatida pelo tempo, é das coisas mais bonitas que se pode ouvir por aí. E uma carreira de 15 anos, sobretudo para um artista que compõe a solo, não é uma carreira terminada. A forma como tem arriscado nos últimos anos tem afastado Sam Beam dos louvores que recebeu por alturas de Our Endless Numbered Days e The Shepherd’s Dog mas não deixem que isso vos afete: a qualquer momento, sai dali uma coisa destas.
Iron & Wine estreia-se em Lisboa a 1 de novembro, com um concerto no Teatro Tivoli, e no Porto a 2 de novembro, na Casa da Música. Ambos os espetáculos acontecem no âmbito do Misty Fest.