Não é suposto o segundo álbum ser o mais difícil de todos?
O primeiro álbum, toda a gente sabe, tem tudo para ser o mais fácil e o melhor, fruto de anos e anos de música criada a pensar naquele momento. O segundo, normalmente, é o sacana que tem de sair a correr e ainda dar conta das expectativas. Não é de estranhar que tantos segundos álbuns tenham saído tão maus.
Claro que há exceções. Além dos que lançam um primeiro álbum de merda e sobrevivem para contar a história, há os que conseguem manter o nível… e depois há aqueles que ainda conseguem elevar a fasquia.
As irmãs Staveley-Taylor
The Staves, as três irmãs inglesas que tocaram em Portugal há quase três anos, na primeira parte de um concerto de Bon Iver em Lisboa, são um destes casos. Lembro-me bem delas: deram um curto concerto que passou rapidamente de interessante a aborrecido. Filhas da folk, as irmãs Staveley-Taylor não tiveram argumentos suficientes para derrotar a ansiedade do público que esperava por Justin Vernon e companhia. Vozes e guitarras às vezes não chegam.
E o primeiro álbum, que apresentaram na altura ao público português, não era propriamente uma obra inovadora… mas também estava longe de ser mau. No mínimo, era promissor. No máximo – e reconheço que posso estar a esticar-me um bocadinho aqui -, um dos melhores álbuns folk do ano para as bandas do Reino Unido.
Mas o segundo álbum, caros amigos, é de outro campeonato. Agora, porque é que me lembrei de lhe dar uma oportunidade?
O toque de Midas de Justin Vernon
Eaux Claires. O concerto de Bon Iver chamou-me a atenção para elas com uma das canções novas, que contou com as três nas backing vocals e foi a coisa mais linda de sempre. Depois li um artigo em que, a propósito do concerto que elas próprias deram no mesmo festival, lhes eram tecidos rasgados elogios. Por fim, percebi que If I Was, o novo álbum, tinha sido produzido por Justin Vernon. E pronto, decidi que tinha de as ouvir com atenção.
Boa decisão.
E então, que tal o álbum?
If I Was não afasta as Staves da folk mas é certo que as torna bem mais interessantes e complexas. As harmonias vocais a três são das coisas mais bonitas e perfeitas que vão ouvir este ano e só por si tornariam este álbum obrigatório. Mas há tão mais para explorar.
O ambiente desafiante de “Blood I Bled”, logo a abrir, dá o mote. Das guitarras à bateria mandona, é um passinho. As três vozes estão lá para nos dar a mão quando tudo parece acontecer ao mesmo tempo. Mas flutuam entre uma delicadeza angelical e uma leveza fantasmagórica, deixando-nos tão inseguros quanto possível (e desejável). E aí entram os metais e muda tudo… e muda tudo outra vez quando entra a maravilhosa “Steady”, em que começamos a perceber onde está o dedo produtor de Justin Vernon.
As irmãs gémeas “No You, No Me, No More” e “Let Me Down” baixam o ritmo mas mantêm a fasquia elevada. Na primeira, as vozes, que serpenteiam entre si durante todo o álbum, começam a serpentear também com os metais e não há grande descrição que contribua para vos esclarecer. Mas posso esclarecer-vos sobre o que acontece a seguir: tudo muda sem mudar quando entra a segunda canção. Parece que basta uma guitarra acústica e tudo parece tornar-se familiar. E é tão bom e quentinho.
E isto recorda-me de que, apesar de ser música para qualquer altura do ano, If I Was promete soar melhor no inverno. Ninguém precisa de aquecer o coração em agosto, certo?
Mas nem de propósito. “Black & White” dá-nos um osso para roer enquanto o inverno não chega. E vale a pena ouvir as vozes delas a brincar às guitarras ali a espaços.
A maior música do álbum chega sensivelmente a meio. Não fosse o título e “Damn It All” quase poderia passar, ao início, por uma espécie de salmo religioso subaquático, com sintetizadores entre o espaço e o fundo do mar. E dura e dura e dura. E dá-nos tempo para pensar em Laura Marling nos seus momentos mais doces. Mas às tantas damos por nós e começamos a ouvir uma guitarra acústica que promete devolver as Staves à folk. Pois enganem-se. 6 minutos é muito tempo e às primeiras notas do trompete torna-se claro que “Damn It All” vai crescer até não poder mais. E vale a pena esperar. E ouvir outra vez. E outra vez. E outra vez. Bruxas.
Reparem: não estou aqui a dizer que o álbum é perfeito. Certamente não é. If I Was nunca deixa de ser pelo menos bem catita mas há certamente momentos em que as Staves não nos arrebatam: “The Shining” e “Don’t You Call Me Anymore”, por exemplo, são – lá está – bem catitas mas não conseguem aguentar o peso de “Damn It All”. Na verdade, entram e saiem como se nunca tivessem passado por lá. Não incomodam ninguém mas ninguém dá por elas de qualquer outra forma.
“Horizons” começa a devolver-nos a confiança nas Staves. Há algo de inacreditavelmente soul nesta folk inglesa que, segundo as mais elementares regras dos estereótipos, deveria ser a coisa mais sem graça do mundo. Mas elas recusam-se, mesmo quando a sua música se aproxima perigosamente daquela americana à la Tom Petty, como em “Teeth White”. (Eu sabia que aquelas harmonias vocais não serviam só para me deixar espantado de boca aberta. Parece que às vezes também arrancam uns sorrisos.)
À medida que o álbum se aproxima do final, já ninguém me tira da cabeça que If I Was é um álbum do caraças. Mas para os que ainda tiverem dúvidas, é impossível escapar a “Make It Holy”, canção que marcha lenta, lentamente e nos envolve com um daqueles baixos que se estica de uma ponta à outra dos pulsos, deixando tudo enevoado. Justin Vernon faz-se ouvir, lá para o meio, no meio delas, e o que era perfeito fica sabe-se lá o quê de bom. Mas chega de superlativos para “Make It Holy”.
Tinha de guardar uns quantos para “Sadness Don’t Own Me”, a música que encerra o álbum. O raio da música parece ter sido feita para mim. Piano e vozes frias ora em uníssono, ora em harmonia; uma guitarra cheia de pormenores deliciosos e algo que me parece ser um sintetizador a largar graves como se não houvesse amanhã e uma certa sensação de preenchimento gradual fazem desta música o final perfeito para o álbum que If I Was acaba por ser.
Para ouvir e ouvir e ouvir até não poder mais
Mas o que acaba por ser If I Was? Uma folk dopada (não no sentido da “freak folk” mas no de “folk capaz de terminar a Volta a França vestida de amarelo”) talvez não chegue para descrever. Não me parece exagerado falar deste álbum como uma espécie de meio caminho entre uma folk tradicional (em instrumentos e em melodias) e aquela coisa ora doce, ora esquisita, mas sempre fantástica e difícil de descrever dos Bon Iver. E certamente haverá alguma culpa de Justin Vernon.
Mas, convenhamos, o tipo não faz magia com a música dos outros. E as Staves fizeram um álbum maravilhoso e cheio de camadas, lindo e interessante… como só a melhor música pode ser. E este If I Was é facilmente um dos melhores discos que me passou pelos ouvidos este ano. É para ouvir e ouvir e ouvir até não poder mais.