O dia em que Josh Tillman decidiu fazer covers.
Trollar.
Um verbo que deixaria Luís de Camões à beira de um ataque de nervos se por cá andasse. Isto se, aos primeiros sinais públicos de desconforto, não fosse trollado até voltar a ficar quieto no seu canto.
Não faltam momentos de enorme trollanço por essa Internet fora. Críticas feitas por utilizadores da Amazon a produtos inacreditavelmente ridículos, sessões de perguntas e respostas com celebridades que acabam pessimamente e – provavelmente o meu favorito – as geniais trocas de email de David Thorne com vizinhos e colegas de trabalho.
Na música não têm faltado exemplos, também. Um dos meus favoritos – algures entre o trollanço e o mindfuck total – foi levado a cabo recentemente por Ed Sheeran. E não, não falo da música dele, que podia ser bem pior. Falo disto:
Resumindo, ele publicou esta imagem. Depois publicou outra sem nada no peito e toda a gente desatou a escrever que o Ed Sheeran tinha trollado os fãs e mais não sei o quê. Só que afinal a tatuagem era mesmo verdadeira e a foto sem nada no peito era um belíssimo trabalho de maquilhagem. M. Night Shyamalan ficaria orgulhoso com tanto twist.
Mas nada bate o genial episódio protagonizado por Josh Tillman, mais conhecido por Father John Misty, há algumas semanas.
Father John Misty e as covers
Tudo começou com o célebre álbum de covers 1989, editado por Ryan Adams para que todos pudéssemos satisfazer o desejo de ouvir versões extremamente deprimentes de canções como “Blank Space”, “Bad Blood” e “Shake It Off” – originais, claro está, de Taylor Swift. Não faltou quem tecesse os maiores elogios à reinterpretação de Ryan Adams, começando pela própria Taylor Swift, tal como não foram poucos os que acusaram o músico de oportunismo, falta de originalidade e ainda o perigoso mansplaining.
Mas Father John Misty é um homem à parte. Quem já o viu em concerto, como há uns meses no Vodafone Paredes de Coura, sabe que ele é um verdadeiro performer e um tipo bastante complexo. Às vezes, é difícil perceber em que momento é que está a falar a sério, seja nas suas canções – que navegam o espaço entre o extremamente íntimo, o desconfortável e o irónico q.b. -, seja na interação com o público. Pelo sim, pelo não… batemos palmas a tudo.
É, portanto, bastante compreensível que ninguém tenha percebido na totalidade o que se passou a partir do momento em que Father John Misty decidiu partilhar aquilo que decidiu descrever como…
“A minha reinterpretação do álbum clássico de Ryan Adams, 1989”
Parecia haver aqui uma crítica implícita, claro, mas o que interessa é a música. No entanto, Father John Misty não se limitou a apresentar-nos versões de Ryan Adams a fazer versões de Taylor Swift. Não. Father John Misty decidiu dar-nos, segundo o próprio, “Welcome To New York” e “Blank Space”… ao estilo The Velvet Underground.
Seria de esperar que Lou Reed ficasse orgulhoso de ouvir isto, certo? Pois, mas não. E bem-vindos ao capítulo seguinte.
Lou Reed não é uma plaything
Menos de 24 horas após ter partilhado as duas canções no Soundcloud, Father John Misty retirou-as… e a máquina por trás de Taylor Swift nem teve nada a ver com isso, como seria de esperar à partida (na realidade, parece que até o encorajaram a pô-las online novamente). Josh Tillman partilhou a explicação no Facebook… e é qualquer coisa de especial.
Resumindo, o músico teve um sonho muito estranho que decidiu descrever em pormenor, em que se destaca o facto de Lou Reed lhe ter aparecido (numa passarela, algemado a supermodelos que tinham adotado bebés que por sua vez também estavam algemados a elas) e lhe ter dito “Apaga aquelas faixas, não invoques os mortos, eu não sou a tua plaything. A coleção de almas é um passatempo caro.” E, diz ele, acordou de seguida.
É óbvio que nada disto aconteceu. Diria mesmo que foi óbvio para toda a gente. Mas isso não impediu ninguém de publicar a história pela piada. Até o The Guardian o fez, por amor de deus.
Na realidade, o que aconteceu foi que Father John Misty decidiu retirar as músicas porque estas estavam a ter demasiado sucesso e ele achava a situação ridícula. Parece-me razoável. E se vocês ouviram as versões dele certamente concordarão.
Mas o facto de nunca ninguém ter posto um travão nisto é curioso. Não é errado, entenda-se, mas é interessante. Deixamo-nos andar sem fazer perguntas, sem procurar explicações. Simplesmente vamos andando. E isso parece ter surpreendido o próprio Father John Misty.
“Eu estava aborrecido com os media. Estava tipo, ‘estas pessoas publicam qualquer coisa’, então dei-lhes o pedaço de nonsense surrealista mais fraudulento, descaradamente absurdo e impossível de publicar – e eles publicaram-no!”
E é verdade. Não há qualquer filtro. E é divertido, sim, mas ao mesmo tempo é tão estúpido.
Porém, independentemente de ser mais estúpido ou mais divertido, a reflexão é interessante. E o acontecimento em si ainda mais, já que o próprio Father John Misty se deu ao trabalho de preparar e lançar duas canções (é certo que não pareceu haver um grande esforço envolvido nesse processo… mas ainda assim). É um grande esforço para quem quer simplesmente trollar. Mas os melhores são sempre assim.
O meu único (pequeno) problema com esta situação é que Father John Misty parece não ter feito o que fez só pela piada mas como uma espécie de gozo irritado. Segundo a Billboard, Father John Misty publicou e apagou dois tweets: “what a dumb world” e “In the studio working on a song for song reinterpretation of Ryan Adams 1989, gonna be great! Ryan’s amazing! #SoPsyched.” Sentia-me melhor se fosse uma coisa um bocado mais próxima da pura brincadeira. Mas não se pode ter tudo, certo?
A não ser quando se é Josh Tillman. Aí, aparentemente, até isto pode acontecer: