Entrevista com Miguel Caetano, autor do Remixtures – parte 1

Há umas semanas, estava pelo Twitter e o Miguel Caetano colocou um ou dois posts sobre os seus álbuns favoritos de 2008. Achei curioso porque, no Remixtures, não costuma falar da música propriamente dita, mas de P2P, DRM e afins. Foi então que pensei numa entrevista com o Miguel que não envolvesse os temas habituais do Remixtures e ele aceitou. Este é o primeiro de dois posts com as respostas do Miguel às minhas perguntas. O segundo aparecerá por aqui lá para sexta-feira.

Há algum artista ou banda que tenha influenciado definitivamente as tuas opiniões e atitudes através da música?
Bem, houve várias bandas mas aquela que me influenciou mais foram de facto os Velvet Underground, banda que eu descobri há mais de 15 anos, quando ainda andava no liceu. Fascinou-me a atitude, o espírito, as letras e, claro, a música – tudo isso remetia para um universo traste/underground do círculo artístico de Nova Iorque dos anos 60 constituído por pervertidos, tarados, junkies, lésbicas, gays, artistas falhados e todo o género de aves raras da espécie humana. É claro que qualquer miúdo de subúrbio armado em indie e com pretensões intelectualóides se deixaria seduzir por esse submundo completamente desligado da sua realidade quotidiana circundante composta por tipos saídos do Beavis & Butthead ou songas mongas. E eu não queria ser um songa monga como os outros. Aliás, acho que nunca fui. Por outro lado, sendo eu um indie armado em intelectual com um bom bocado de peso a mais (que hoje já perdi, felizmente :-), sentia-me bastante rejeitado e incompreendido por todos, mas também não me preocupava muito com isso porque sempre tentei criar o meu universo pessoal.

Sendo os VU um bando de pessoas que faziam questão de rejeitarem o mainstream e a sociedade, eu identificava-me plenamente com aquilo tudo. Eles também não se enquadravam e no entanto nos anos subsequentes ao seu fim eles acabaram por influenciar centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. Eles mostravam que os freaks tinham todo o direito a ser aquilo que queriam ser. Há uma citação da crítica de música Ellen Willis que diz tudo a esse respeito:

The Velvets were not nihilists but moralists. In their universe nihilism regularly appears as a vivid but unholy temptation, love and its attendant vulnerability as scary and poignant imperatives. Though Lou Reed rejected optimism, he was enough of his time to crave transcendence. And finally– as “Rock And Roll” makes explicit– the Velvets’ use of a mass art form was a metaphor for transcendence, for connection, for resistance to solipsism and despair.

No fundo, é isso. Os discos deles provam que a música pode ser a melhor arma de resistência ao quotidiano, uma fuga para a depressão, para todas as tendências suicidas, para todas as porcarias que temos que aturar no dia-a-dia. E que existe espaço para todas as diferenças por mais diferente que sejamos mas que cabe a nós trilhar o nosso caminho, nem que tenhamos que lutar muito. Nos Velvet Underground, a arte coexiste numa simetria perfeita com a vida. A arte torna-se uma explicação ou justificação para a vida e é indissociável dela. Não é apenas um mero passatempo para entreter as massas. Nesse sentido, eles colocaram em prática as ideias defendidas desde há alguns anos antes pelos situacionistas em França. Eles sempre se estiveram nas tintas para o sucesso, para o dinheiro ou para os modismos. Mas foram a banda mais influente de sempre justamente porque não tinham uma mensagem política, porque não faziam propaganda. A sua política era viver a vida intensamente e não tramar nem se deixar ser tramado por ninguém.

E depois a leitura do livro do João Lisboa sobre os Velvet publicado por essa altura também me marcou muito. Porque no fundo, a história dos Velvet é quase que o argumento de um filme, com o Andy Warhol, a Nico, a Edie Sedgewick, o Gerard Malanga, o Paul Morrison e todas as intringas, as desavenças, os casos amorosos, as separações. Outra coisa interessante é que eles não faziam propriamente música de vanguarda, mas também não eram Pop, apesar de músicas como “There She Goes Again”. Eles gozavam com os estereótipos e os preconceitos e assimilavam e combinavam tudo, desde Terry Riley a Bo Diddley.

No fim de contas, acho que ouvir músicas como “Heroin”, “Pale Blue Eyes”, “Stephanie Says”, “Sunday Morning” por aquela altura e naquela idade serviu como um antídoto perfeito para muitos eventuais dissabores futuros, para ter uma visão menos ingénua mas ao mesmo tempo mais esperançosa da vida. Os Velvet foram para mim uma anti-filosofia de vida precisamente porque eles romperam com todos os falsos profetas, gurus, religiões e fetichismos. Ensinaram-me a desconfiar das imagens e das falsas aparências.

Miguel Caetano é o autor do Remixtures, um blog sobre cultura livre.