A maior parte da música que ouço tem letras que nunca chego a compreender realmente. Interpreto-as, colo-as a algo que me diga qualquer coisa e guardo aqueles versos especiais, mas as minhas conclusões são tão válidas como as vossas.

Pensem no impressionismo de Bon Iver, na quase criptografia dos Radiohead ou na espécie de romantismo dos Broken Social Scene, por exemplo. Aliás, acho que, entre os meus mais ouvidos, só Sun Kil Moon foge a esta regra, com as letras altamente descritivas e cheias de quotidiano com que Mark Kozelek tem povoado os discos nos últimos anos.

De tempos a tempos, no entanto, deixo-me levar por coisas mais terrenas, por letras que parecem deixar muito pouco por dizer. E, como sempre acontece quando mergulho na música de um artista, vou fundo, fico lá por baixo um bocado valente e volto quase irreconhecível. Desta vez, voltei maluco por música country e a culpa é de Jason Isbell.

Acho que ouvi falar dele pela primeira vez em 2015, quando editou Something More Than Free. Acabei por gostar bastante de “If It Takes A Lifetime”, a música mais country do álbum, mas nunca o explorei devidamente. Não sei porquê, tal como não sei porque é que há uns meses decidi voltar a ouvir o raio da música.

De qualquer forma, depois de a ouvir há uns meses, fiquei agarrado. E acho que é uma boa altura de voltar ao tema das letras:

I’ve been working here
Monday, it’ll be a year
And I can’t recall a day when I didn’t wanna disappear
But I keep on showing up
Hell-bent on growing up
If it takes a lifetime

Coisas mais terrenas, como dizia ali em cima. Senti-me muito próximo disto. E senti-me ainda mais próximo destes lindões aqui:

Well I thought the highway loved me
But she beat me like a drum

A proximidade era relativa, dado que coisas como “And working for the county keeps me pissin’ clear” são provavelmente demasiado country para um português de Lisboa (e eu nem costumo gostar muito de coisas que soam assim). No entanto, foi o proverbial pé na porta. E desde então tem sido uma desgraça.

Sou maluco por tudo o que é americana (o género) e Jason Isbell revelou ser uma excelente forma de matar o vício. Mas ainda a procissão vai no adro. Com a devida atenção, ouvi apenas três álbuns: o supramencionado Something More Than Free, o álbum-revelação Southeastern e o mais recente trabalho de Jason Isbell com a 400 Unit, a sua banda habitual (que é mais ou menos a mesma coisa que um álbum a solo, diga-se), The Nashville Sound.

Isto significa que me faltam uns três álbuns, além do trabalho que Isbell fez com os Drive-by Truckers (que é um bocadinho mais rock do que o material a solo). E isto leva-me novamente às letras.

A música de Jason Isbell não é totalmente autobiográfica – muitas das brilhantes histórias que conta nas letras são apenas isso mesmo, histórias -, mas dá-nos muita informação sobre o percurso dele, com destaque para o passado de álcool e drogas que o levou a dizer adeus aos Drive-by Truckers. “Cover Me Up”, canção de amor dedicada a Amanda Shires, violinista da banda e (talvez com maior relevância para o caso) atualmente mulher de Jason Isbell, tem um par de versos sobre o assunto:

But I sobered up and I swore off that stuff
Forever this time

Nada que bata a espécie de refrão, claro:

So girl, leave your boots by the bed
We ain’t leaving this room
Till someone needs medical help
Or the magnolias bloom

Mas Isbell é sobretudo um contador de histórias. E é nesse registo, tal com Dylan, Springsteen e Paul Simon, que o músico do Alabama mais brilha. A pronúncia é extremamente sulista, mas não o vão ouvir a contar histórias sobre raparigas de minissaia mamalhudas e cowboys idiotas. E sim, o homem pega nas coisas mais deprimentes, mas country sem canções sobre alcoolismo e doenças e tragédias genéricas também não fazia sentido. A questão é que ele o faz de forma sublime. E a música, sempre muito simples, deixa as palavras brilharem. Como em “Relatively Easy”, em que a mera utilização do advérbio de modo transforma um verso relativamente banal na coisa mais poética do mundo:

Here with you there’s always
Something to look forward to
My lonely heart beats relatively easy

E se querem acabar uma canção a chorar, porque não optam por “Elephant”? É claro que tinha de ser sobre cancro (porque… country) e é a coisa mais triste do mundo. Mas Jason Isbell dá-nos personagens com que empatizar, imagens vívidas de pessoas e acontecimentos e histórias simples e bonitas. Pensem na diferença entre Marley & Eu A Lista de Schindler: podem acabar a chorar em ambos, mas há um que vos dá uma tareia emocional. “Elephant” dá-nos uma tareia:

There’s one thing that’s real clear to me:
No one dies with dignity
We just try to ignore the elephant somehow

(Eu não estou a chorar, vocês é que estão a chorar!)

É curioso como em cada álbum dos que ouvi parece haver uma certa linha orientadora: Southeastern é o álbum da sobriedade focado no que ficou para trás; Something More Than Free, por outro lado, parece centrar-se mais nas lutas do presente, na ideia de que é preciso continuar a fazer sacrifícios para conseguir chegar a um ponto melhor; e The Nashville Sound é, de longe, o álbum mais político, mais voltado para o mundo, porque Trump veio estragar tudo e este tipo do norte do Alabama por acaso até é liberal. Mas não deixa de ser curioso que a melhor música do álbum – e talvez de toda a carreira de Jason Isbell – seja uma canção de amor.

E é tudo tão terreno, tão real. O que é que uma pessoa pode fazer senão continuar a escavar, a procurar concertos e coisas do género?

Haja quem faça playlists bonitas.