Enquanto fã de música deprimente, não há sentimento no mundo que goste mais de ver retratado numa canção do que a resignação.
Há algo de encantador na maneira como se manifesta, às vezes absolutamente transparente, outras quase disfarçada de otimismo. E é intrigante ver quem quer que seja a mostrar-se resignado porque a resignação é uma forma de adaptação ao contexto muito difícil de explicar. O que é que leva alguém a anular-se ao ponto em que não há outro caminho que não o da resignação?
No que a descobrirmúsica diz respeito, tenho algumas técnicas mais ou menos bem definidas. Entre as várias ferramentas de descoberta que o Spotify disponibiliza, os artistas recomendados do Last.fm, as notícias e críticas dos principais sites de música e as recomendações feitas por amigos, acho que tenho uma rede bastante bem montada. Aliás, parece-me seguro dizer que só não conheço mais música porque sou um tanto ou quanto preguiçoso e tendo a tornar os meus artistas e bandas preferidos em objetos de obsessão.
Há, no entanto, uma ferramenta de descoberta musical que normalmente não identifico enquanto tal: o acaso. Bem sei que chamar-lhe ferramenta pode ser abusivo, mas deixem-me explorar o tema.
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Mark Kozelek esteve este sábado no Teatro-Cine de Torres Vedras no âmbito do pouco divulgado festival Vagabundo, que trouxe a esta cidade, bem como Aveiro e Torres Novas, alguns nomes sonantes da música, com destaque para Howe Gelb e, claro, o criador dos Red House Painters e dos Sun Kil Moon.
Parece que Brendan Canning não quer que escutemos o seu YouGots 2 Chill e eu não percebo porquê. O álbum não é uma obra-prima mas é mais que certo que merecia um título menos parvo. YouGots 2 Chill? Não, pá… não.
No mundo tipicamente cauda longa da música indie, os Bon Iver são enormes. Já os Volcano Choir, por outro lado, estão a um pequeno pormenor de serem apenas ilustres desconhecidos. O pormenor responde pelo nome Justin Vernon, mais conhecido pelas maravilhas que tem feito com os Bon Iver.
Fui ver os Built to Spill ao Lux Frágil, em Lisboa. Conheço-os quase tão mal como centenas de outras bandas cujos discos me passam pelas mãos e pelos ouvidos sem deixar uma marca especialmente profunda. A única diferença está no facto de só conhecer um álbum deles e, olha, gostar bastante de meia dúzia de músicas.
Cruzei-me pela primeira vez com a música de Dan Mangan há quase três anos. Recordo-me perfeitamente: foi “amor à segunda vista”. A primeira vez que oouvi, achei giro mas não me impressionou. Mas algumas semanas depois decidi pôr o álbum a tocar no carro e foi nessa noite que, a determinada altura, “Fair Verona” se fez ouvir e mudou tudo. Estava sozinho e senti-me quase como se tivesse ganho um prémio moderadamente alto numa qualquer lotaria, sem saber muito bem como lidar com isso. Senti também que aquilo que ali estava a tocar era um segredo demasiado bem guardado para o meu gosto.
De certa forma, Dan Mangan ainda é um segredo para uma parte significativa do mundo. No Canadá, já levou uns Juno para casa e foi nomeado para um Polaris– nada mau para um tipo tão pouco conhecido fora do Canadá. Por exemplo, a bíblia damúsica independente, a Pitchfork, nunca ouviu falar (ou pelo menos nãoquer falar) de tal pessoa. E toda a gente sabe o que acontece a bandas e artistas independentes que não estão na Pitchfork, certo?
Proponho-me – com um misto de humildade e arrogância – lutar contra isso. Como? Simples: falando damúsica dele até ter convencido cada um de vocês.
Então, vá: quem é este tal de Dan Mangan?
Ainda bem que perguntam.
Dan Mangan é um músico de Vancouver, no Canadá, que cresceu, segundo a curtíssima biografia publicada no AllMusic, rodeado de discos dos pais. Nick Drake e The Beatles tornaram-se referências obrigatórias para o miúdo que já começava a dar uns toques na guitarra e chegou mesmo a ter uma banda, os Basement Suite. Não me perguntem nada sobre eles, que não faço ideia.
Em 2003, com 20 anos, gravou um EP com nove músicas chamado All At Once que adorava conhecer mas não conheço. Segundo a Wikipedia, foram editadas e distribuídas 500 cópias deste EP acústico… e é isto. Nada mais consigo dizer-vos.
Há, no entanto, uma canção deste conjunto que foi reaproveitada por Dan Mangan alguns anos depois: “Till I Fall”, que podemos encontrar no Roboteering EP, editado em 2009. Mas já lá vamos.
Postcards And Daydreaming
Corria o ano de 2005 quando Dan Mangan foi para estúdio gravar aquele que viria a ser o seu primeiro álbum de originais. Já em formato banda, com dois ilustres desconhecidos chamados Daniel Elmes e Simon Kelly, Postcards And Daydreaming viu a luz do dia em outubro de 2005. Esta edição de autor de mil unidades era vendida online e em concertos mas cedo se percebeu que a coisa não ia ficar por aí – e não ficou. Em 2007, a File Under: Music, uma editora independente de Vancouver, reeditou o álbum.
Mas afinal o que tem o álbum de especial?
Bem, antes de mais, percebe-se que é um primeiro álbum, claramente. Com uma maturidade acima da média, não consegue, ainda assim, disfarçar algum desnorte. As influências de Nick Drake ainda estão muito presentes mas há um pouco de tudo. Da pop/rock convencional de “Above The Headlights” à folk de “Come Down”, passando pelo rock baladeiro de “Not What You Think It Is”, é fácil perceber que as letras intimistas de Dan Mangan estão uns passos à frente damúsica. Há, ainda assim, momentos estupendos, como a dupla “So Much For Everyone”/”Western Wind” e a sublime “Some Place To Come Home To”. Postcards And Daydreamingé um álbum para se ouvir depois dos outros, como se fosse uma compilação de lados B. Mas é para ouvir à mesma. Até porque a voz meio grave, meio rouca de Dan Mangan já se faz ouvir aqui em toda a sua glória.
Roboteering EP e Nice, Nice, Very Nice
Dois anos depois da File Under: Music ter pegado em nele, Dan Mangan lança Roboteering EP, dando assim uma ideia bastante clara daquilo que poderíamos esperar de um segundo álbum. “Robots”, “The Indie Queens Are Waiting” e “Sold” eram as três primeiras canções deste EP e voltariam a estar assim bem juntas em Nice, Nice, Very Nice. Uma das que ficou para trás foi “Tragic Turn Of Events / Move Pen Move”, que brilha a fechar o EP graças ao encontro da guitarra acústica de Dan Mangan com a spoken word de Shane Koyczan. “Move Pen Move”, que é a parte da autoria de Koyczan, tinha sido já editada em A Pretty Decent Cape In My Closet no ano anterior.
2009 ia ser o ano de Dan Mangan. Nice, Nice, Very Nice, que deve o seu nome a um verso de um maravilhoso poema de Kurt Vonnegut, tinha sido gravado no ano anterior e foi recebido pela crítica da melhor forma possível. Com boas críticas. E com prémios.
E eu percebo porquê. Aliás, foi (bem mais tarde) graças a este álbum que descobri Dan Mangan e só posso dizer que as críticas não chegam para explicar o que Nice, Nice, Very Niceé. Tem algumas das melhores letras de canções que alguma vez li e ouvi, com aquela simplicidade terrena de um Mark Oliver Everett e a elegância de um outro Mark, o Kozelek (dos Sun Kil Moon e dos Red House Painters). Ele próprio diz, em “Tina’s Glorious Comeback” que vendeu a alma ao diabo por uma boa “penmanship”, mas que agora escreve bem e está a ficar arrependido. Não vejo porquê.
Peço-vos encarecidamente que ouçam a letra de “You Silly Git” para compreenderem o que quero dizer. E se isso não resultar, então não há como escapar aos pesos pesados “Fair Verona” e “Basket”, duas das minhas canções favoritas de sempre (estou a dizer isto pela primeira vez mas não tenho a mais pequena dúvida de que é verdade). Uma é épica e teatral, a outra mostra verdadeiramente o que Dan Mangan é enquanto artista: um subtil cantor de histórias.
(Esta é a altura em que vos digo que, mesmo que não leiam este artigo na sua totalidade, vejam o vídeo seguinte até ao fim. Não precisam de agradecer.)
Mas o álbum é todo ele impressionante. O aparente desnorte tinha desaparecido – Nice, Nice, Very Nice foi, desde o primeiro momento, um passo firme em forma de álbum perfeito.
Em 2010, a Arts & Crafts pegou no álbum para o distribuir nos Estados Unidos e na Europa – foi graças a isto que fiquei a conhecê-lo.
Oh Fortune
Em setembro de 2011, depois de vários meses de gravações e digressões, Dan Mangan lançou Oh Fortune. Em termos sonoros, a evolução foi natural – para um som ainda mais completo e grandioso. É, também, o álbum mais maduro e adulto que editou.
Pessoalmente, ainda continuo a preferir aquela simplicidade folk de Nice, Nice, Very Nice – de que ainda podemos encontrar resquícios em “If I Am Dead” – mas é impossível ouvir Oh Fortune e não gostar. Canções como “Post-war Blues”, “Starts With Them, Ends With Us” e “Rows Of Houses” não me deixam mentir.
Já em 2012, Dan Mangan lançou Radicals, um single que tem em “We Want To Be Pleasantly Surprised, Not Expectedly Let Down” a sua estrela (o lado B é uma cover pouco interessante, sinceramente). A mim faz-me especialmente feliz por ver que Dan Mangan parece estar a seguir um caminho de sons à Broken Social Scene, épicos, enormes e maravilhosos. Faz-me pensar que ofuturo promete.
E é também por isso que insisto em Dan Mangan. Não percebo porque é que, fora do Canadá, continuam a não lhe ligar muito (apesar da presença num ou noutro festival de grande dimensão, como Glastonbury, por exemplo) mas acho que ainda vão a tempo.
A mim, falta-me vê-lo ao vivo. Mas não tardará muito, estou certo. Haja digressões europeias e um dinheirinho de parte. Já perdi uma oportunidade – que ainda assim me valeu um vinil de Nice, Nice, Very Nice autografado. Não tenciono perder outra.
Agosto está a acabar… mas espero que o calor não se vá já embora com os nossos queridos emigrantes. É que há canções que sabem melhor com este calor, com este sol, com o dolce far niente típico da estação. E assim, mesmo que não haja agosto, ao menos temos as canções. Canções para ouvir em viagem, na praia, parado no meio do nada ou onde quer que seja.
Foi publicado no PNAS há dias um estudo realizado por Chia-Jung Tsay muito interessante sobre o papel da visão na formação de julgamento acerca do desempenho musical. E qual é a principal conclusão deste estudo? Simples: a visão é mais importante do que a audição para avaliar as melhores performances musicais.